Evangelho

Contextualização e a comunicação do evangelho

Artigo
03.05.2017

9Marcas: Há quanto tempo você, um americano, tem vivido em um contexto de outros continentes?

Ed Roberts: Passei um ano na América Latina e mais ou menos 19 anos na Ásia, a maior parte do tempo na Ásia Central.

9M: Você pode descrever genericamente o tipo de lugares que você viveu?

ER: Na América Latina, vivi numa cidade grande e também em uma pequena vila no fim de uma rua pavimentada, literalmente. Um tipo de catolicismo sincrético parecia ser a religião principal com uma minoria de crescimento protestante, mesmo nas vilas.

Na Ásia Central, vivi em uma cidade enorme (incalculáveis milhões), uma cidade grande (4 milhões) e uma cidade pequena de meio milhão de habitantes. Várias linguagens eram faladas na primeira cidade, onde o Islã estava clandestino por 2 ou 3 gerações e o cenário religioso era majoritariamente islâmico com alguma influência sufista (um variante do Islã). As pessoas eram tecnicamente alfabetizadas em uma linguagem, mas basicamente não eram boas leitoras em qualquer outra linguagem.

Em outra cidade, todos falavam uma língua. Quase todos (95%) professavam o Islã, mas práticas religiosas e adesão à vestimenta Islã e aos costumes variavam amplamente de vizinhança para vizinhança.

Perseguição oficial e não-oficial dos seguidores de Jesus, e particularmente dos líderes (incluindo prisões) é a norma da cidade, ao passo que nas outras duas cidades havia pequenos encontros públicos em igrejas, apesar de não terem posição legal. A porcentagem de cristãos nessas cidades da Ásia Central é menor que 0,1%, ou seja 1 a cada 1000 cidadãos.

Como parte do meu trabalho, interagi regularmente com trabalhadores de uma grande variedade de contextos na Ásia Central onde não havia igreja alguma e somente alguns crentes úteis, se é que havia isso.

9M: O 9 Marcas tem pensado ultimamente acerca da suficiência das Escrituras para líderes em plantação e crescimento de suas igrejas. Então, quão importante o tópico da contextualização tem sido para você no seu trabalho?

ER: Tem sido uma parte essencial do meu trabalho. Toda vez que tentamos comunicar o evangelho ou plantar uma igreja, já estamos envolvidos na tarefa da contextualização. E em contextos de intercâmbio cultural, alguém tem que contextualizar bem ou as pessoas irão compreender de forma errada o que você está dizendo.

Contextualização é um processo complexo, mas aqui está uma definição simples:

“Contextualização (de intercâmbio cultural) é a tentativa de aprender e ouvir cuidadosamente sobre culturas e assim comunicar claramente a mensagem do evangelho, quem Jesus Cristo é e o que significa ser um completo devoto seguidor de Jesus em um contexto diferente da Bíblia e/ou daquele do comunicador.”

Visto que todos nós contextualizamos, podemos bem tentar fazer isso da forma adequada! Ou pelo menos ter os objetivos corretos em mente. Aqui estão algumas sugestões para boas contextualizações de intercâmbio cultural:

 1. Perceba que seu objetivo na contextualização deveria sempre ser clarear o evangelho e a doutrina bíblica. Nosso objetivo não deve ser fazer outros confortáveis com o cristianismo ou a Bíblia. Não é minimizar a perseguição por minimizar a ofensa da cruz. E não queremos confundir nossa cultura com o evangelho. Não proclamamos a nós mesmos, mas Jesus Cristo como Senhor (2Coríntios 4.1-6).

 2. Perceba que todas as culturas são caídas e precisam de transformação. Contudo, por causa da benignidade de Deus e da imagem de Deus em todas as pessoas, nem todo aspecto da cultura é mal e hostil ao evangelho. Toda cultura oferecerá barreiras e pontes para o evangelho. Aprender e ouvir uma cultura nos ajuda a identificar o que é cada coisa.

Em Atos, vemos o judaísmo do primeiro século ter pontes e barreiras para o evangelho. Nos escritos de Paulo e João, vemos como conceitos comuns poderiam ser uma ponte para comunicar o evangelho, enquanto certos termos pagãos eram barreiras e tinham que ser destruídos e reconstruídos com um significado cristão. Yahweh adaptou certos elementos dos tratados culturais do Oriente Próximo antigo. Davi também adaptou dispositivos de poesia contemporânea de sua época e os preencheu com conteúdo bíblico.

3. Perceba que conforme a mensagem do evangelho está enraizada em uma cultura particular, ela simultaneamente confronta os aspectos caídos dessa cultura e dos mensageiros do evangelho em si. Isso é verdade para igrejas locais também. A Escritura sempre nos confronta e nos desafia em nossa comunidade de igreja local, chamando-nos para uma maior fidelidade à Palavra.

 4. Perceba que temos que ser pacientes em nosso pioneirismo de intercâmbio cultural na plantação de igrejas. Nós iremos errar. As primeiras igrejas em um contexto pioneiro precisarão de tempo e encorajamento para se tornarem saudáveis. Temos que ensinar e treinar. E temos que confiar nos crentes locais e no Espírito Santo trabalhando neles. A igreja é de Cristo, não nossa.

5.Perceba que todos somos inclinados a confundir nossa aplicação da doutrina bíblica com o ensino bíblico em si. Em outras palavras, o objetivo da contextualização de intercâmbio cultural envolve a tentativa de comunicar a verdade em diferentes formas e até mesmo estranhas para nós.

Por exemplo, podemos pensar que uma igreja que não mantém uma lista de membresia não pode ser séria acerca dela. Bem, talvez. Mas talvez haja apenas 10 pessoas na igreja local e todos conhecem uns aos outros muito bem, e sabem quem é um batizado incluso bem-vindo na Ceia e quem não é. Eles possuem uma lista escrita em um papel? Quem se importa?! Eles praticam membresia bíblica!

9M: Onde você traçaria a linha entre uma contextualização sábia e não-sábia?

ER: Contextualizadores sábios abraçam objetivos bíblicos para contextualização. São humildes e astutos intérpretes da cultura, mas eles sempre começam com a Escritura e retornam para a Escritura. Contextualizadores sábios estão engajados em um tipo de dança hermenêutica. Eles leem, ouvem e obedecem às Escrituras. Estão crescentemente cientes e ajustando (ou descartando?) suas próprias lentes culturais para que vejam as verdades bíblicas mais claramente. E prestam atenção ao contexto cultural para que possam comunicar e aplicar as verdades mais e mais claramente. Contextualizadores sábios não estão com medo de dizer: “eu estava errado sobre isso. Isso é o que as Escrituras dizem – ou não dizem. E não tinha visto antes”.

Contextualizadores não sábios operam independentemente. Eles desdenham ou ignoram qualquer questão cautelosa das pessoas de fora do seu contexto imediato: “Você não conhece essas pessoas como eu!”. Eles não prestam atenção na história da igreja. Contextualizadores não sábios começam com o contexto local e cultura em vez da Escritura e seu contexto. Eles prestam atenção a cultura local e contexto, mas não ouvem as Escrituras.

Contextualizadores não sábios nunca parecem confrontar ou desafiar a cultura com a Palavra de Deus. Em vez disso, eles tomam todas suas sugestões da cultura. Eles somente respondem questões que a cultura já está pedindo. Mas a Bíblia responde algumas questões que culturas podem não pedir naturalmente.

Pode ser difícil traçar a linha entre uma contextualização sábia e não sábia à distância porque geralmente não entendemos o que as pessoas em uma cultura estrangeira querem dizer quando fazem ou falam certas coisas. Aqui está um exemplo provocador:

Você está viajando na Ásia Central e é apresentado a um homem barbado vestindo uma roupa bege esvoaçante e sandálias. Ele fala um pouco de inglês. Você foi avisado que ele é um cristão, um ex-muçulmano. O inglês dele é ruim, mas você pode capta-lo dizendo: “Amo ir para a mesquita!”.

Aha! Um daqueles movimentos sincretistas inclusivos! Mas o que o irmão quer dizer é que ele visita a mesquita regularmente para encontrar seus amigos e compartilhar o evangelho com eles. Ele nunca visita a mesquita durante o tempo das orações diárias e nunca realiza os rituais de oração. Ele é parte de uma igreja pequena que se encontra em casas nos domingos à noite. Ele diz a outros que Jesus é Senhor e que a religião islâmica não é compatível com seguir Jesus como Senhor. E pelo menos até agora, ele é bem-vindo para conversar e visitar seus amigos na mesquita.

Um estrangeiro que não tem tempo de perguntar e investigar pode chamar isso de contextualização não sábia. Ou se não entendemos que mesquitas funcionam como locais de encontro para reuniões sociais, centros de informação e até mesmo hotéis em áreas muçulmanas, podemos pensar que toda visita para uma mesquita é uma observância religiosa. Não é.

9M: Como o tópico da contextualização se relaciona com a doutrina da suficiência das Escrituras?

ER: As Escrituras são suficientes para nos ensinar tudo que precisamos saber sobre discipulado de intercâmbio cultural, mas elas não dirigem exaustivamente cada questão que pode surgir em uma comunicação de intercâmbio cultural. Contextualização lida com detalhes culturais específicos e geralmente detalhes locais que as Escrituras não foram designadas para dirigir. As Escrituras provêm princípios e doutrinas que informam e controlam tudo das circunstâncias da nossa vida.

As Escrituras provêm todas as constantes universais para o processo da contextualização. Mas a aplicação particular daquelas constantes requer um aprendizado em oração e diálogo em comunidade. E nem sempre entendemos isso direito!

Um entendimento apropriado da suficiência da Escritura também ajuda estrangeiros culturais a se resguardarem contra imposição de detalhes culturalmente específicos que não são herdados na verdade bíblica ou na doutrina. Então, se a Escritura é suficiente, então não iremos insistir que outros tenham ou não tenham listas de membresia, tenham ou não tenham pessoas andando no corredor, ou insistir que eles fiquem de pé e ensinem atrás do púlpito por menos de 45 minutos. Iremos insistir que Jesus o Senhor requer nossa completa e exclusiva aliança religiosa e que ser um seguidor de Jesus exclui a participação em qualquer comunidade religiosa rival.

9M: Agora, queremos ser honestos aqui. Um “Modelo 9 Marcas” funciona em seu contexto? Quais ajustes de contextualização precisam ser feitos? E se ajustes precisam ser feitos, isso significam que o 9 Marcas não é tão bíblico afinal?

ER: Primeiro, se ajustes de contextualização tem que ser feitos na aplicação de um modelo de intercâmbio cultural, isso não significa que o modelo não é bíblico. As “nove marcas” não são exaustivas sobre o que a Bíblia diz sobre igrejas saudáveis, mas elas são úteis nos que é essencialmente central.

Sou muito grato ao 9 Marcas e sua ênfase! Da forma como entendo, o próprio 9 Marcas foi inicialmente projetado para desafiar aspectos não saudáveis da cultura eclesiástica no Ocidente, particularmente nos EUA. Então, começando com as Escrituras, o 9 Marcas tem tido uma abordagem contextualizada para aplicar as práticas das Escrituras para encorajar uma vida da igreja mais saudável. Igrejas saudáveis também são o que almejamos plantar aqui na Ásia Central, mas o contexto algumas vezes é bastante diferente.

O modelo do 9 Marcas precisa de menos ajustes em culturas que são alfabetizadas e já possuem igrejas em andamento com pastores, diáconos e equipe técnica fazendo seus respectivos papéis.  Funciona melhor em um lugar onde há pouca perseguição e liberdade considerável de expressão e assembleia religiosa. Digo isso porque o modelo surgiu em uma cultura alfabetizada que dá espaço ao estabelecimento cultural e propaganda de instituições e organizações.

Instituições e igrejas institucionais são uma coisa boa de várias formas, mas na Ásia Central, geralmente não temos essa liberdade ou oportunidade, pelo menos não ainda. Isso não significa que as nove marcas não funcionem na Ásia Central. Significa que como implementar as nove marcas na Ásia Central pode requerer algum ajuste.

Por exemplo, tome um pastor pobre bi-vocacionado com inglês limitado, ou inexistente e com somente um livro em sua casa. Como ele pode aprender a pregar expositivamente ou aprender teologia bíblica? A resposta será diferente em algumas formas do que é para um pastor internacional que fala inglês e tem acesso à internet. É claro que algumas advertências são idênticas: leia e releia o texto no contexto; ore o texto dentro de sua própria vida primeiramente; e assim por diante. E ambos indivíduos podem acabar fazendo bons trabalhos de ensino expositivo. Mas pode parecer diferente.

Como como você ensina “preparação e entrega de um sermão expositivo” em um contexto que não tem ainda uma Bíblia completa traduzida, ou tem somente a Bíblia e nenhum outro recurso, ou cujos supervisores têm apenas somente algumas horas na semana para se preparar para ensinar, e têm poucos, se é que algum, modelos de bom ensino para observar? Eles podem ser facilmente desencorajados por nossas respostas para a questão do como se respondermos da nossa própria fonte de fonte de pesquisa.

Todos nós tendemos a replicar os métodos que foram úteis para nós em nosso treinamento. Todos nós temos a tendência para ver nossa aplicação da essência como a própria essência. Mas se nosso objetivo é comunicar um modelo 9 Marcas de “preparação e entrega de sermão expositivo” em um contexto de intercâmbio cultural, você precisa estar ciente dessas tentações e fazer os ajustes.

Outro exemplo: O 9 Marcas ensina que igrejas deveriam aspirar um presbitério plural com presbíteros biblicamente qualificados e presbíteros deveriam “ser aptos para ensinar”. Mas como isso se mostra vai variar de cultura para cultura, assim como métodos de ensino e abordagens variam.

Ou considere como igrejas deveriam cultivar uma cultura de discipulado. O 9 Marcas diz que é absolutamente essencial e bíblico para igrejas saudáveis. Penso que isso está certo, mas como fazer isso e como criar isso irá variar de acordo com a cultura, mesmo que alguns aspectos não mudem. Em Washington DC, o discipulado pode ocorrer através da leitura de um livro com alguém. Mas isso não funcionará tão bem em culturas onde conversas um-a-um são extremamente raras – e as pessoas geralmente não leem.

Cometeremos erros em contextualização. Mas um primeiro passo importante é reconhecer a necessidade de fazer uma boa contextualização, o que significa crescer em nossa autoconsciência cultural.

Uma contextualização sábia trabalha duro em comunicar o que é a essência bíblica e o que está disponível. O 9 Marcas responde às questões do tipo “como”, todas comunicam bem com mínimos ajustes em alguns contextos que são culturalmente similares, mesmo na Ásia Central. Áreas urbanas e cosmopolitas onde o inglês é a língua franca, ou onde igrejas institucionais podem bancar pastores de tempo integral e equipe de apoio, refletem muito menos distância cultural aos EUA do que alguns lugares da Ásia Central.

Em contextos de intercâmbio cultural, é muito difícil saber como comunicar claramente se não temos primeiramente prestado atenção e aprendido daqueles que estamos tentando comunicar. Então, se o 9 Marcas quer realmente fazer uma diferença duradoura em contextos de intercâmbio cultural onde a igreja não existe, ou onde a cultura é muito diferente, será preciso ser bastante intencional em como se aproxima do discipulado de intercâmbio cultural.

Se o modelo 9 Marcas é em teoria ajustável para esse tipo de situação culturalmente específica, e penso que seja, então bravo! Minha esperança é essa: que um exemplo diverso, mas biblicamente aceitável de como aplicar o modelo 9 Marcas seja repetidamente comunicado em contextos de intercâmbio cultural.