Família

Pode uma pessoa solteira refletir a imagem de Deus?

Por Stephen J. Wellum

Stephen J. Wellum (PhD, Trinity Evangelical Divinity School) é professor de Teologia Cristã no Southern Baptist Theological Seminary e editor do Jornal de Teologia Southern Baptist.
Artigo
20.10.2020

Minha resposta curta é sim. Entretanto, a explicação de porque isso é assim requer uma resposta da Bíblia inteira, visto que superficialmente, a resposta parece ser não. Esse é especialmente o caso se você limitar sua discussão à história da criação e às alianças do AT. Por exemplo, pense sobre o que Gênesis 1–2 nos ensina sobre a criação do sexo masculino, feminino e matrimonial.

Em Gênesis 1, tudo parece centrar-se na criação de homens e mulheres no sexto dia (Gn 1.26-31). Nesse dia, Deus criou o homem – homem e mulher – para serem seus filhos servos, seus reis e rainhas para governar a criação, se casarem e terem filhos. De fato, isso é lindamente retratado em Gênesis 2, onde nos é dito que nenhum ajudador adequado foi encontrado para Adão do resto da criação, então Deus criou Eva para complementá-lo (Gn 2.23). A criação de Eva torna-se então a base para a instituição do casamento, que é a base para a sociedade humana (Gn 2.24), e a solução para evitarmos a destruição da sociedade.

Além disso, após a queda e até o fim desta era, a ordem da criação continua no pacto de Noé, que inclui o casamento e a família (Gênesis 9.1-7). Mesmo sob as alianças de Abraão e Moisés, a proposta é que os humanos se casem, tenham filhos e cumpram o mandato da criação. De fato, não casar e ter filhos é visto como anormal. Então, se nos limitarmos ao AT, parece que as pessoas solteiras só podem ver a imagem verdadeira de Deus no casamento.

Mas esta seria uma conclusão errada. Deixe-me explicar por que em quatro etapas.

Primeiro, mesmo em Gênesis 1–2, as Escrituras não reduzem a imagem de Deus à relação homem-mulher no casamento.

O casamento é certamente uma expressão do que significa ser portador da imagem, mas nós, como indivíduos, somos criados à imagem de Deus, independentemente de sermos casados ​​ou não. Caso contrário, desde a concepção, não teríamos a imagem de Deus. Nós só nos tornaríamos à imagem de Deus depois de nos casarmos, o que não é o caso. Em vez disso, é melhor enfatizar que somos criados para relacionamentos, o que é expresso de maneira singular no casamento heterossexual, mas não se limita a isso, como evidenciado nas crianças solteiras das famílias e pessoas em comunidades.

Segundo, por mais vital que seja pensar sobre a nossa criação humana, devemos primeiro pensar sobre o propósito último da nossa criação, a saber, estar em um relacionamento de aliança com o nosso Criador.

Afinal, o glorioso Deus trino das Escrituras é a pessoa mais central na história da criação, e o propósito de nossa criação é conhecê-lo e glorificá-lo. Deus nos criou não apenas um para o outro, por mais significativo que isso seja, mas para sua própria glória e para o relacionamento em aliança com ele. Cumprimos, então, o propósito da nossa criação no relacionamento – primeiro para com Deus e depois uns com os outros – sendo o casamento apenas uma das formas de expressar os relacionamentos humanos.

Terceiro, encontramos a prova de que o casamento não é a expressão máxima de como nós imaginamos Deus através da vinda de Cristo e da inauguração da nova aliança.

Por quê? Porque na obra de Cristo, ele cumpre as alianças anteriores e revela o propósito final de Deus para nós. A esse respeito, considere Efésios 5.21–33 em relação ao casamento. Ao dar instruções para os casamentos cristãos, Paulo baseia seu ensino em Gênesis 2.24 como você esperaria. Mas então ele faz algo inesperado. Ele diz que Deus criou o casamento para ser um “mistério”, isto é, uma revelação do propósito ou plano final de Deus, que agora foi revelado na vinda de Cristo.

Para Paulo, Deus planejou que o casamento fosse um padrão tipológico para revelar algo maior, a saber, o relacionamento de Cristo com sua igreja. Isso só faz sentido se o casamento humano for visto não como um fim em si mesmo, mas como meio para um fim maior. Em outras palavras, por mais vital que seja o casamento humano, Deus não pretendia que fosse permanente em seu plano e, portanto, a única expressão de sua imagem. Em vez disso, Deus projetou o casamento por múltiplas razões, mas mais significativamente para apontar além, para o maior e mais profundo relacionamento para o qual Deus nos criou, ou seja, para estarmos em relacionamentos na igreja, e como igreja, estarmos em relacionamento com Cristo.

Quarto, essa verdade agora faz sentido para duas outras verdades do NT relacionadas ao casamento.

Primeiro, Jesus ensina que, tão significativo quanto o casamento é para essa era, não há casamento na consumação (Mt 22. 29-30). Em outras palavras, Deus pretendia que o casamento humano fosse temporário para essa era, mas apontando para algo maior. O que é eterno, então, não é o casamento humano, mas o relacionamento de Cristo com a igreja. Se é assim, então o casamento não pode funcionar como o único lugar em que vemos a imagem de Deus.

Segundo esta verdade também faz sentido quando Paulo diz que estar solteiro é um dom carismático (1Co 7.7, 25-40). No AT, não há nada comparável a esse ensinamento. Mas agora que Cristo veio, a nova criação começou a raiar e as velhas estruturas da criação estão sendo transformadas, incluindo o casamento e a família – embora isso não ocorrerá de forma completa até a consumação. Na igreja, o estado de solteiro não deve ser considerado inferior ou anormal, já que os solteiros, juntamente com os casais, fazem parte do que é permanente: a igreja. Como povo de Deus, vivemos o propósito de nossa criação e imagem tendo relacionamentos uns com os outros e com Cristo.

Então, uma pessoa solteira pode ser a imagem de Deus à parte do casamento? A resposta curta e longa é sim. Nas Escrituras, ligado à ordem criada por Deus, o casamento humano é vitalmente importante, mas não é permanente nem é o único lugar onde os humanos podem ver a completa imagem de Deus. Se somos casados, nossos casamentos devem refletir tudo o que Deus o criou para refletir. No entanto, o relacionamento matrimonial não é um fim em si mesmo. Em vez disso, a igreja é – a igreja que é composta de solteiros e casados como nova humanidade de Deus e nova criação. As pessoas solteiras, como crentes individuais e especialmente como parte da igreja, são a imagem de Deus à medida que constroem relacionamentos entre si e crescem em seu relacionamento com o Deus trino, centrado em Cristo Jesus, nosso Senhor.

Tradução: Paulo Reiss Junior.
Revisão: Filipe Castelo Branco.

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