Libertação e justiça são temas populares na esfera pública. E os cristãos devem se interessar por tais temas. Nós fomos libertos e sabemos que Deus é justo.
Mas o que a Bíblia quer dizer ao falar sobre ser liberto? E sobre buscar a justiça?
Algumas vozes na igreja construíram paradigmas teológicos inteiros a partir desses temas, aplicando-os à sociedade como um todo. Considere afirmações como as seguintes:
[…] A única razão de ser [da teologia cristã] é apresentar em um discurso ordenado o significado da ação de Deus no mundo, para que a comunidade dos oprimidos reconheça que a sua sede inata por libertação não é apenas consistente com o evangelho, mas é o evangelho de Jesus Cristo.
A construção de uma sociedade justa tem valor em termos do Reino, ou, numa fraseologia mais comum, participar do processo de libertação já é, em certo sentido, uma obra salvífica.[1]
Essas assertivas foram feitas por James Cone e Gustavo Gutierrez, respectivamente. Ambos tiveram papéis influentes no desenvolvimento da chamada Teologia da Libertação na América do Norte e do Sul na segunda metade do século XX. A partir dos conceitos sociais de raça e classe, Cone e Gutierrez construíram sistemas teológicos que seriam, ao fim, adotados por cristãos protestantes na América do Norte, predominantemente em igrejas afro-americanas, e segmentos da Igreja Católica na América Latina.
Para avaliar e responder a propostas como essas, os pastores precisam da teologia bíblica.
Afinal, a teologia da libertação se estendeu hoje de modo a servir a uma miríade de outras causas – do feminismo à homossexualidade e ao ambientalismo. O objetivo deste artigo não é discutir essas ramificações contemporâneas, mas colocar uma teologia bíblica evangélica em diálogo com a teologia da libertação, como um estudo de caso para aprendermos como a teologia bíblica protege e fortalece as igrejas na sã doutrina.
O que a teologia bíblica tem a dizer…
Em um sentido genérico, teologia bíblica é simplesmente teologia derivada da Bíblia. E, embora esse compromisso certamente seja necessário para se chegar à verdade sobre Deus, muitas molduras teológicas – inclusive a teologia da libertação – reivindicam procedência bíblica.
Contudo, o termo “teologia bíblica” também se refere a um modo de interpretar a Bíblia, isto é, um modo que ajuda a compreender as narrativas menores as quais, juntas, compõem uma narrativa bíblica total. Ele se preocupa tanto com a grande imagem quanto com os seus pixels, em especial como os autores bíblicos entendiam os detalhes desses pixels à luz da grande imagem como um todo.
Então o que a teologia bíblica tem a dizer em resposta às reivindicações e objetivos da teologia da libertação? Eu posso pensar em cinco tópicos que a teologia bíblica desejaria abordar:
Sobre a opressão sistêmica: os contextos da teologia da libertação
Primeiro, a teologia bíblica expressará uma compreensão empática dos contextos sociais e políticos nos quais a teologia da libertação emergiu nas Américas. Indivíduos como Cone e Gutierrez estavam buscando, desesperadamente, demonstrar a relevância da Bíblia em meio a horrendas realidades sociais e econômicas. Poucos evangélicos na época estavam interessados em abordar tais coisas e muitos impediram progresso naquelas áreas.
A natureza corrosiva do racismo de Jim Crow no sul dos Estados Unidos e as realidades devastadoras da pobreza crônica na América Latina levaram pensadores teológicos a forjar um sistema que fosse tanto profético como público. Infelizmente, à medida que certas questões foram trazidas para o centro, o essencial foi empurrado para as margens.
A teologia bíblica não apenas nos chama a reconhecer esses contextos, mas também nos ajuda a examiná-las de maneira correta. Todas as injustiças no mundo apontam de volta para a queda e para a rebelião fundamental do homem contra Deus. Por exemplo, racistas são racistas porque são rebeldes contra Deus. E, ao apontar para a verdadeira origem do racismo, a teologia bíblica pode então seguir o rastro do enredo bíblico até descobrirmos que a cura definitiva está na pessoa e obra de Jesus Cristo. Apenas os cristãos têm a única mensagem apta a reconciliar racistas e outros rebeldes com um santo e justo Deus.
A missão da igreja local, sem dúvida, é entregar e espalhar essa mensagem evangélica.
Sobre o pecado: o réu da teologia da libertação
A teologia da libertação descreve o pecado não em termos de uma rebelião individual contra um santo e justo Deus, mas em termos de injustiça estrutural e coletiva. E negligenciar completamente os pecados do indivíduo é um erro. Por outro lado, pode-se fechar os olhos para as evidências da queda estrutural ao mesmo tempo em que se reconhece a pecaminosidade dos indivíduos que habitam essas estruturas.
A teologia bíblica encoraja o equilíbrio. O enredo da Escritura situa a origem do pecado no coração humano individual, de tal modo que Paulo pode concluir: “pois todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Romanos 3.23). Mas, tão logo indivíduos caídos começam a construir civilizações, sua condição caída se concretizará nas instituições que governam a sociedade, do juramento de Lameque à decisão coletiva de construir Babel, às balanças enganosas e aos decretos iníquos (Gênesis 4.24; 11.4; Deuteronômio 16.19-20; Provérbios 16.11; Isaías 10.1-2). Uma lei ou prática injusta, em outras palavras, é uma injustiça institucionalizada ou estrutural.
Além disso, o enredo do Israel pré-exílico nos apresenta não apenas uma narrativa de atos pecaminosos discretos, mas da corrupção infecciosa de uma nação inteira, em parte devida às injustiças de seus reis e sacerdotes, cujos pecados manifestavam-se não apenas individualmente, mas institucional e estruturalmente – em tudo, desde os seus tratados com potências estrangeiras à prática do suborno e à exploração do órfão e da viúva.
Assim, falar da obra de Cristo ao cumprir a lei e os profetas é falar não apenas de uma lavagem e purificação individuais, mas de uma lavagem e purificação institucional e estrutural. Ele não é apenas o indivíduo justo; ele é o verdadeiro templo. Ele não apenas guardou o sábado; ele é o Senhor do Sábado. Ele não é apenas um novo Adão; ele é um novo reino e nação e governo.
Os cristãos, que se submetem ao governo de Cristo, deveriam, portanto, estar entre os primeiros a reconhecer não apenas a prevalência do pecado individual, mas do pecado institucional e corporativo. Ao considerarem a governança de Cristo, eles estão treinados para discernir a natureza de um governo verdadeiramente justo. Embora grandes falhas marquem o registro histórico nesse particular, indivíduos cristãos deveriam lutar para liderar o caminho não apenas de oposição a atos individuais de injustiça, mas às injustiças institucionais. Nós devemos servir como sal e luz em um mundo tenebroso. Ainda assim, a teologia bíblica compreende que este mundo continuará a falhar em refletir a glória de Deus, exatamente porque todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus.
Ademais, na teologia da libertação, o pecado é descrito dentro do binário oprimido/opressor. Não há espaço para debruçar-se sobre normas universais de comportamento ético. Além disso, parece que aqueles que constituem a comunidade dos oprimidos são até mesmo incapazes de cometer pecado.
Aqui, a teologia bíblica novamente enfatizaria a universalidade do pecado (Romanos 3.23; 5.12). Toda a humanidade, tanto os opressores quanto os oprimidos, é culpada de pecado. Essa culpa e corrupção herdadas têm sua gênese no Jardim, no qual tanto a inocência como o paraíso são perdidos por causa da desobediência idólatra (Gênesis 3.7, 23).
Isso significa que, dentro do enredo bíblico, até mesmo aqueles considerados vítimas são também vilões que necessitam desesperadamente da graça salvadora.
A Bíblia não conta uma história de mocinhos contra bandidos. Em vez disso, ela conta a história de um único que é bom, o qual sofre em lugar de um povo que é mau e em favor desse povo adquire o bem (2 Coríntios 5.21). O conflito humano procede da quebra da comunhão com Deus, da qual toda a humanidade padece. Qualquer teologia que rejeite este fato pode apenas enganosamente ser chamada “da libertação”, uma vez que ela confina seus aderentes à perpétua escravidão e, talvez, à condenação eterna.
Sobre a vitimização como lente interpretativa: a hermenêutica da teologia da libertação
A teologia da libertação ensina que a Bíblia deve ser interpretada sob a perspectiva do pobre e do oprimido. Ela faz isso a fim de evitar mais injustiças e de trazer à luz os sofrimentos das vítimas sociais. De fato, ela afirma que a Bíblia existe para revelar Deus como o libertador das vítimas oprimidas. Essa libertação é, de muitas maneiras, vista como a essência da mensagem da salvação.
Mas deveríamos nós utilizar a comunidade dos oprimidos ou os pobres como a lente interpretativa por meio da qual lemos a Bíblia? Uma teologia bíblica correta defende que a Bíblia não é sobre o homem, mas sobre o Deus-homem, Jesus Cristo. A pessoa e obra de Cristo é o ápice da história da redenção. Ele é o objeto último e o consumador da fé que justifica. Lembre-se de que Jesus colocou a si mesmo no centro da narrativa do Antigo Testamento (Lucas 24.27). Assim, uma hermenêutica centrada em Cristo é o princípio para abrir o significado das Escrituras.
Essa convicção nos ajuda a nos concentrarmos no conteúdo do grande drama bíblico. É a história da história dele, movendo da criação à queda, à redenção, à consumação. A Bíblia conta a história de um Deus que planejou, da eternidade passada, assegurar a salvação de um povo pecador ao enviar e sacrificar o seu Filho.
Sobre a narrativa do êxodo: o tema dominante da teologia da libertação
Para a teologia da libertação, especialmente a teologia da libertação negra, o relato do Êxodo é o tema central em torno do qual a teologia se orienta. O ato de Deus libertar o seu povo da escravidão egípcia estabelece as expectativas e a agenda atual da teologia da libertação.
Aplicar a história de resgate do Êxodo ao mundo temporal das nações e da política não começou no meio do século XX. Escravos negros americanos nos séculos XVIII e XIX foram atraídos para a narrativa do Êxodo, uma vez que ela refletia sua condição. A narrativa servia como uma prova positiva de que Deus era capaz de e desejava resgatar um novo Israel (escravos negros) de um novo Egito (América). Olhando mais além, os puritanos do século XVII que atravessaram o Atlântico consideravam estar deixando um Egito (Inglaterra) em missão divina, embarcando no que um historiador chamou “uma peregrinação pelo deserto”. Não obstante, a teologia da libertação moderna foi a primeira a tomar essa narrativa e aplicá-la como normativa às comunidades oprimidas.
A teologia bíblica expõe diversos problemas com essa pressuposição prescritiva. Primeiro, ela ignora o fato de que as pragas culminam na morte dos primogênitos e na Páscoa, um ato de julgamento que caía tanto sobre os descendentes de Abraão quanto sobre o resto do Egito. Os descendentes de Abraão, contudo, tinham um modo de escapar por meio de um sacrifício substitutivo. Os Evangelhos, depois, caracterizam Cristo como o nosso Cordeiro Pascal (por exemplo, João 1.29). Não seria correto dizer, portanto, que o caminho do nosso êxodo é por meio do sacrifício expiatório desse Cordeiro Pascal, em vez de, por exemplo, por meio da modificação de leis injustas?
Segundo, a teologia da libertação falha em reconhecer – ou, pelo menos, parece menosprezar – a realidade pactual em que o Êxodo se expressa. O Êxodo não foi um evento meramente político e socioeconômico. Em vez disso, Deus estava mantendo uma promessa pactual ao reunir para si mesmo um povo pactual: “Tomar-vos-ei por meu povo [israelitas] e serei vosso Deus” (Êxodo 6.7). A Antiga Aliança, então, foi cumprida na Nova. E em nenhum lugar Jesus faz uma nova aliança no seu sangue com os puritanos. Ou com os escravos negros. Ou com os excluídos da América do Sul. Em vez disso, ele oferece uma nova aliança por todos aqueles que se arrependem e crêem em sua obra pactual realizada.
Terceiro, a teologia da libertação falha em considerar o objetivo do evento do Êxodo. Deus diz a Faraó: “Deixa ir o meu povo, para que me sirva no deserto” (Êxodo 7.16, ênfase acrescida). O objetivo não era, em última instância, a libertação política ou econômica, mas ajuntar um povo governado por Deus, obediente e adorador. E, contudo, nós sabemos que os israelitas acabaram por fracassar em submeter-se ao governo de Deus, fracassaram em adorar e fracassaram em obedecer. Embora eles tenham sido resgatados da escravidão física, permanecem em escravidão espiritual. A teologia da libertação, portanto, põe a sua esperança num Êxodo que, literalmente, não liberta e jamais libertou.
Felizmente, o tema do Êxodo não está confinado ao Pentateuco; ele está presente em toda a Bíblia. A desobediência pecaminosa de Israel culmina com os cativeiros assírio e babilônico nos séculos VIII e VI a.C., respectivamente. Antes desses cativeiros, os profetas Isaías e Jeremias falaram de um novo Êxodo, um que iria ofuscar o primeiro. Segundo esses profetas, este Êxodo, quando plenamente realizado, não apenas incluiria o retorno dos exilados, mas, e mais importante, a libertação espiritual.
Assim, o grande descuido da teologia da libertação no que se refere à narrativa do Êxodo é que ela falha em tratar o evento do Êxodo como uma sombra da libertação que Cristo traz. À medida que a Bíblia se descortina e a Nova Aliança é estabelecida, Cristo é retratado como um superior Cordeiro pascal (1 Coríntios 5.7), como um superior Moisés (Hebreus 3.1-6) e como o verdadeiro Israel (Oséias 11.1; Mateus 2.15). Colocando de modo simples, o Êxodo é, em sua plena expressão, a salvação eterna do pecado e da condenação, salvação que só se pode encontrar em Cristo. Um novo povo de Deus está sendo moldado segundo a sua justiça, não segundo uma identidade étnica ou uma condição social.
Sobre o fim dos tempos: o erro escatológico da teologia da libertação
É difícil discernir o que a teologia da libertação ensina sobre o fim dos tempos. O modo como Deus levará este mundo ao seu fim apropriado não constitui uma preocupação imediata dos teólogos da libertação. Além disso, a realidade de uma vida por vir é raramente discutida. O que importa é o aqui e o agora e como a opressão, a pobreza e a injustiça podem ser erradicadas hoje. Ela sustenta que uma teologia preocupada com um mundo superior e por vir paralisa as comunidades oprimidas e justifica o status quo. Portanto, a teologia da libertação busca desiludir as pessoas de suas expectativas futuras e encorajá-las a buscar essas esperanças futuras agora.
Embora perigosamente desorientada, há algo de valor a se reconhecer aqui. A teologia da libertação oferece uma crítica justa a alguns na comunidade evangélica, ao expor o que pode apenas ser considerada uma indiferença para com a injustiça social, ainda que escondida sob uma doutrina ortodoxa.
Não obstante, o corretivo que a teologia bíblica oferece é de imensa importância: ela afirma a ressurreição final e a nova criação por vir. O testemunho bíblico está cheio de um constante refrão da esperança eterna. As alianças bíblicas culminam na nova aliança em Cristo, marcada pelo selo da habitação do Espírito – o literal penhor da prometida herança a se receber (Efésios 1.14). E, contrário ao que a teologia da libertação sugere, a esperança dessa herança encoraja tanto a paciência que reflete a Cristo (2 Coríntios 4.17-18; 1 Pedro 2.21-23) como os esforços que exaltam a Cristo (1 Coríntios 15.58).
A teologia bíblica expõe o fato de que a teologia da libertação não apenas tem uma escatologia excessivamente realizada, mas se engana completamente acerca do fim dos tempos. O objetivo último do drama bíblico da redenção não é fazer com que o homem habite com o homem em harmonia e igualdade. O objetivo do drama se realizará e se expressará na exclamação desta grande voz: “Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles.” (Apocalipse 21.3). Infelizmente, a libertação que importa não pode ser encontrada na teologia da libertação.
Notas:
[1] As citações no início deste artigo – assim como os ensinamentos em geral do sistema teológico criticado – foram respectivamente extraídas de James H. Cone, A Black Theology of Liberation, Fortieth Anniversary Edition (New York: Orbis Books, 2010) [N.T.: Sem tradução em português] e Gustavo Gutierrez, A Theology of Liberation, 15th Anniversary Edition (New York: Orbis Books, 1988) [N.T.: Publicado em português sob o título Teologia da libertação: perspectivas (São Paulo: Edições Loyola, 2000)].