Discipulado

Discipulado: nosso viver está em morrer

Por Garret Kell

Garret Kell é pastor sênior da Del Ray Baptist Church em Alexandria, Virginia.
Artigo
23.03.2017

Ao me tornar um cristão na universidade, logo me vi um pouco confuso. Não porque meus novos amigos cristãos costumassem relembrar desenhos animados com vegetais falantes de sua infância, ou tivessem símbolos de peixe em seus carros, ou se divertissem com jogos de tabuleiro nas noites de sexta, embora tudo aquilo causasse confusão. O que me causava perplexidade eram os paradoxos que pareciam inescapáveis para aqueles que seguiam a Cristo.

Ao estudar as Escrituras com outros cristãos, eu descobrir muitas verdades que eram ao mesmo tempo claras e obscuras. Aprendi que há um único Deus, o qual subsiste eternamente em três. Aprendi que Jesus é plenamente Deus e plenamente homem. Aprendi que Deus é completamente soberano e que as pessoas são responsáveis por suas ações. Essas idéias eram misteriosas, enigmáticas e, ao mesmo tempo, maravilhosamente edificantes.

Mas os paradoxos da vida cristã não terminam aí. Meditando nas Escrituras, eu vi que o crescimento e a maturidade cristã se dão de modos paradoxais. Se desejamos crescer como cristãos e ajudar outros a crescerem, é essencial compreender esses paradoxos.

Nosso viver está em morrer

Primeiro, nosso viver está em morrer. Em Marcos 8.35, Jesus diz: “Quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho salvá-la-á”. Se queremos viver, devemos morrer. Esse conselho parece tolo num mundo que constantemente nos aconselha a “seguir os nossos corações” e a “aproveitar a vida”! Diz-se-nos que temos apenas uma vida e que devemos aproveitar cada momento à medida que escalamos até o topo da montanha.

Ser um discípulo de Jesus, contudo, significa entregar as nossas vidas e abraçar a vida que Cristo dá. Esse é o único caminho para a vida verdadeira. Como diz Bonhoeffer, “quando Cristo chama um homem, ele o ordena a vir e morrer”. Essa morte acontece milhares de vezes antes do céu e é, sempre, um ato de fé em Jesus.

Anos atrás, eu fui enredado numa teia de pecado. Descontentamento, lascívia e falta de fé entraram sorrateiramente no meu coração, como uma serpente, e estavam lentamente destruindo minha devoção ao Senhor. Naquele período, um querido irmão falou de modo poderoso ao meu coração: ele me chamou a viver pelo morrer. Ele me mostrou que o meu amor pelo mundo estava sufocando meu amor por Cristo. Ele falou com verdade e com graça. Deus usou aquele irmão para abrir os meus olhos para a promessa da vida que viria apenas por meio da morte. Eu não tenho certeza de onde estaria se ele não houvesse me apresentado novamente o chamado de Jesus e sou eternamente grato de que ele o tenha feito.

No discipulado, nós devemos consistentemente segurar as lentes da eternidade diante dos olhos uns dos outros, a fim de assegurar que não estamos sendo “endurecido[s] pelo engano do pecado” (Hebreus 3.13). O mundo constantemente nos chama a encontrar vida em seus prazeres. O único antídoto para essas poderosas exigências é a meditação em como Cristo entregou a sua vida por nossa causa. Considere o quanto ele odiou o pecado. Pondere em como ele nos amou. Lembre-se de como ele padeceu. Pense em como ele morreu. Alegre-se em como ele glorificou o Pai.

O nosso discipulado deve ser marcado por como ajudamos uns aos outros a meditar no chamado de Cristo para tomarmos diariamente nossa cruz e o seguirmos. Morrer é o único caminho para viver.

Nosso descanso está no esforço

Segundo, nosso descanso está no esforço. Jesus consumou a obra, de modo que nós não devemos descansar até que a obra esteja completada. Hã?

Como eu posso me esforçar para “[guardar-me] no amor de Deus”, enquanto, ao mesmo tempo, descanso no fato de que Deus “é poderoso para [me] guardar de tropeços” (Judas 21, 24)? O que significa virmos a Jesus e recebermos “descanso para a [nossa] alma” (Mateus 11.29), enquanto, ao mesmo tempo, somos exortados a “[nos esforçarmos], pois, por entrar naquele descanso” (Hebreus 4.11)?

De todos os paradoxos do crescimento cristão, a ideia de esforçar-se e descansar ao mesmo tempo parece ser a mais enigmática. Devo eu trabalhar cada dia até desfalecer de exaustão, ou devo eu sentar-me no sofá e esperar que Jesus me conduza como uma marionete? Como eu “ajo” e “dependo” ao mesmo tempo? Como eu trabalho sem trabalhar na minha própria força? O que significa labutar com fervor pela graça que Deus supre?

Embora talvez seja enigmática, nós devemos abraçar essa tensão tal como ela se apresenta na Escritura (Deuteronômio 29.29; 1 Coríntios 15.10; Filipenses 2.12-13). Deus nos chama a descansarmos completamente na obra de Cristo (João 19.30; Hebreus 10; 1 Pedro 3.18) e, ao mesmo tempo, a trabalharmos duro (João 15.8; 1 Coríntios 9.24-27; Tiago 2.14-26). Filipenses 2.12-13 captura perfeitamente o paradoxo: “Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade”.

É nesse paradoxo que nós vemos em que consiste a fé. Nós corremos, nós agimos, mas, quando paramos para considerar, descobrimos que o chão no qual estamos apoiados é o chão o qual Deus prometeu que estaria ali. Quando olhamos para trás, descobrimos que, sim, nós corremos, mas era Deus operando em nós. Nós descansamos na fidelidade de Deus em nos capacitar para que nos empenhemos na obediência.

Sendo assim, o que esse paradoxo significa para o nosso discipulado de outros cristãos? Ao gastar tempo com outros crentes, descansem em Cristo. Juntos, fitem a cruz. Juntos, contemplem o sepulcro vazio. Tragam à memória as promessas que enfatizam a nossa libertação do pecado e da condenação (p.ex., Romanos 6.1-4; 8.1). Orem por meio de versículos que falam do amor de Deus por nós em Cristo (Efésios 2.1-10; Romanos 8.32-39; 1 João 4.10). Lembrem uns aos outros de que Deus não mantém um “placar” nos céus. Ele não tem um botão de “delete” nos seu computador, para a próxima vez que você bagunçar as coisas. Entesourem o fato de que nós estamos agradando a Deus, porque ele se agrada de Cristo. Preguem o evangelho uns aos outros. Chamem uns aos outros a descansarem no brado de Cristo de que tudo “está consumado!”.

Nós também devemos descansar no fato de que o Cristo ressurreto intercede por nós nos céus (Hebreus 7.10). Essa intercessão nos garante que Deus será misericordioso para conosco em nossas iniqüidades e não mais se lembrará dos nossos pecados (Hebreus 8.1-12). Que maravilhosa verdade na qual descansar! Nós somos perdoados em Cristo. Deus não mantém as nossas transgressões contra nós. Nós descansamos na obra consumada de Cristo e na sua contínua obra em nosso favor.

Ao mesmo tempo, o nosso discipulado deve ser marcado por um esforço conjunto. Lembrem-se uns aos outros de que Jesus nos deu o “Ajudador”, o Espírito Santo, para nos capacitar a viver de maneira agradável a Deus (João 14.26; Romanos 8.4). Nós labutamos, mas não labutamos sozinhos. Somos unidos à presença do vitorioso Rei dos reis, por meio do seu Santo Espírito. Ele nos habilita a fazer discípulos entre as nações (Mateus 28.19-20) e a suportar perseguição à medida que avançamos (Lucas 12.11-12). Nós podemos suportar os sofrimentos desta vida na força do Senhor (2 Coríntios 12.9-10) e, então, confortar os outros em seus sofrimentos (2 Coríntios 1.3-7).

Então, esforcem-se juntos por viver como soldados de Cristo que estão em guerra contra o maligno (2 Timóteo 2.2; Efésios 6.10; 1 Pedro 5.8-9). Disciplinem a si mesmos e estruturem os seus hábitos a fim de crescerem em piedade (1 Timóteo 4.7). Usem intencionalmente as suas interações para estimularemuns aos outros no amor e nas boas obras (Hebreus 10.24-25). E, acima de tudo, ajudem uns aos outros a se desembaraçarem de tudo o que os atrapalha, a fim de que possam terminar a corrida e entrar naquele descanso final que nos foi prometido (Hebreus 12.1-3).

Os paradoxos do crescimento espiritual não nos foram dados para nos paralisar. Deus os deu a nós para que examinemos a sua Palavra mais atentamente e nos aprofundemos em suas promessas mais livremente. Então, encorajem uns aos outros a viverem por meio do morrer e a descansarem por meio do esforço.

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